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Invisíveis aos olhos da sociedade e do poder público

Atualizado: 20 de dez. de 2020

Em meio a pandemia, cidadãos em situação de rua ficam mais expostos à Covid-19


O brasileiro enfrenta desde o fim de 2019 a pior pandemia do século, e, desde então, são muitas as mudanças vivenciadas trabalho, estudos, família, e relacionamentos. O distanciamento social nos forçou a trocar o contato físico por telefonemas ou chamadas de vídeo. O mundo virtual e o isolamento têm provocado mudanças principalmente nas relações afetivas.


Agora pare, pense, e se pergunte: como está sendo para os cidadãos chapecoenses em situação de rua sobreviver a pior pandemia deste século e a constante exclusão na sociedade? Nessa reportagem daremos voz àqueles que normalmente não têm, afinal, quem nunca passou por um grupo de cidadãos em situação de rua e se perguntou: “como é sua trajetória e vivência?”


A solidão do morador de rua. (Créditos: Briann Ziarescki)


“Ninguém ajuda a gente não. É só a gente que se ajuda”


Era uma quinta-feira pela manhã, onde um vento fresco marcava o início da primavera no hemisfério sul. O rigoroso inverno chapecoense havia chegado ao fim e com ele mais um mês findava-se neste atípico ano de 2020. Nessa manhã em especial, atravessamos a rua até o canteiro central da principal avenida da cidade. Como combinado na tarde do dia anterior, ali estavam eles. Com um sorriso no rosto, cumprimentaram-nos com um caloroso “bom dia” capaz de aquecer qualquer coração mesmo naquela fria manhã.


Pedimos se podíamos sentar-nos com eles para iniciarmos nossa conversa. Prontamente aceitaram e cinco ou seis levantaram-se dispostos a dar lugar naquele canteiro. Sentamos próximos a um senhor de pele queimada pelo sol, vestido de camiseta da chape, pés descalços e um litro de cachaça nas mãos. Seu nome: Alceu de Morais, cidadão chapecoense em situação de rua a cerca de um ano e meio.


Seu Alceu fez questão que conhecêssemos todos os ocupantes da roda naquela manhã, incluindo o que dormia profundamente ao seu lado. “Podem ficar tranquilos que aqui ninguém é bandido, tudo pessoal honesto”, disse orgulhoso. Conversa vai, conversa vem e fomos conhecendo cada vez mais do sexagenário senhor de barba e cabelos grisalhos. “Algum de vocês é advogado?”, interrompeu Alceu seguido da explicação: “estou precisando muito de um”. Curioso com a situação, perguntamos o porquê de precisar urgentemente de um advogado.


Alceu então contou-nos que está com trombose em seu joelho esquerdo e que há meses aguarda pela cirurgia constantemente adiada. “Dói muito meu Deus do céu. Têm dias que mal consigo caminhar”, desabafa. A protelação da cirurgia de Seu Alceu é devido a pandemia de Coronavírus que assola o país. Até aqui, 146.675 mil pessoas morreram de Covid-19 e o total de casos se aproxima dos 5 milhões. Mesmo assim, todos ali estavam sem máscaras naquela manhã.


Questionado sobre o motivo da ausência da mesma, Seu Alceu explicou que não havia dinheiro para comprar nem uma sequer. “O que a gente consegue aqui nas sinaleiras é pra comer e pra bebida, de resto não sobra nada”, contou. Insistimos perguntando se a prefeitura havia realizado algum movimento para ajudar nesse quesito, mas a negativa veio explícita. “Ninguém ajuda a gente não. É só a gente que se ajuda”, lamenta Alceu. Procuramos a prefeitura de Chapecó para saber mais sobre a situação e até o momento não obtivemos respostas.


O senhor seguiu o relato, contando que passava os dias sentado naquele canteiro e dependia totalmente da ajuda de seus parceiros. “Se não fosse o pessoal aqui eu já estava morto faz tempo. Eles me ajudam muito, principalmente o Bertotti aqui”, disse apontando para o homem que dormia ao seu lado. Clair Bertotti, mais conhecido por seu sobrenome, havia caído das escadarias da Catedral Santo Antônio de Chapecó duas semanas antes de nosso encontro com eles. Ficou internado por três dias, sendo liberado com mais de 12 pontos na face e outras contusões pelo corpo. Sem remédios, a bebida era a única saída para curar momentaneamente as dores. “Estamos juntos na rua tem um ano e meio já”, conta Alceu que continua dizendo o quanto o amigo havia sofrido nos últimos dias.


Aquelas eram apenas duas histórias que ouvimos de inúmeras existentes em nosso país. Quantas outras trágicas deixamos de prestar atenção? Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) houve um crescimento de 140% da população em situação de rua no país desde 2012, chegando a 222 mil brasileiros em março deste ano. Os números tendem a aumentar consideravelmente devido a pandemia de Coronavírus e a decorrente crise econômica.


Embora grande parte dos estudos sobre a população em situação de rua tenham sido realizada no século XX, há registros de sua existência desde o século XIV. Assim, nota-se que esses indivíduos não receberam a devida atenção nos séculos anteriores, e sua abordagem pode ter sido impulsionada pelo aumento de seu contingente, sendo que a cada ano mais pessoas utilizam as ruas como moradia.


Moradores de rua Chapecoenses. (Créditos: Briann Ziarescki)


“Bêbado a gente esquece da fome, da dor, do frio”


Para continuar a conversa, precisamos sentar debaixo de uma árvore com o objetivo de fugir do sol que já brilhava fortemente naquela hora da manhã. Agora com ambos acordados, perguntamos como era lidar com as repentinas mudanças de temperatura que Chapecó proporciona, em especial no inverno. A resposta veio do chacoalhar do líquido dentro da garrafa seguido de uma longa risada. “A cachaça ajuda a gente a se esquentar. Bêbado a gente esquece da fome, da dor, do frio”, relata Bertotti ao tomar mais um gole.

A bebida é a principal válvula de escape dessa triste realidade em que vivem os cidadãos em situação de rua. Perguntados se gostariam de ajuda para largar do vício, ambos são enfáticos ao dizer que querer não é poder. “Não tem ninguém para ajudar a gente a largar (da bebida), eles gostam de chamar a gente de vagabundo e desocupado, mas para ajudar a gente de verdade não tem ninguém não. Só Deus mesmo”, lamenta Alceu com a voz embargada.


Além da bebida, ambos compartilham de uma pequena e surrada jaqueta como proteção ao inverno chapecoense. Questionados se não houve alguma ajuda da prefeitura durante o inverno, a resposta foi novamente negativa. “Nem um cobertor deram pra gente. Passamos o inverno todo deitados dentro do canteiro para aguentar o frio”, conta Bertotti indignado. “Sabe como o Seu Buligon ajudou a gente? Tirando os bancos daqui do canteiro pra gente não sentar. É assim que ele nos ajudou”, salienta.



Bancos retirados do canteiro central da Av. Getúlio Vargas. (Créditos: Briann Ziarescki)






Alceu e Bertotti estão juntos há mais de um ano e meio, onde vivem em situação de rua em Chapecó. Apesar das particularidades de cada um, que vão desde as diferenças gritantes na fisionomia de ambos, há pontos de convergência na história dos dois. Seu Alceu de Morais é de Chapecó e saiu de casa após problemas com seu padrasto. Assim como o amigo, a causa de Bertotti estar nessa situação é a mesma: desentendimento com o padrasto. Portanto, apesar de ambos possuírem família na cidade, não conseguem ir para casa e sem escolha se encontraram na rua sem ter para onde ir.


A briga familiar e posterior expulsão de casa, são apenas algumas das diversas causas que fazem com que milhares de pessoas se encontrem em situação de rua no país. Além destas, segundo dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua encomendada pelo Ministério do Desenvolvimento Social entre os anos de 2007 e 2008, apontam o vício em drogas e/ou álcool como principal razão que levam as pessoas às ruas com 35,5%, seguido pela perda do emprego com 29,8%.


Os laços que unem essa parcela da população foram descritos pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2005 como a falta de moradia fixa, ou de um lugar para descanso temporário. Em Chapecó, porém existe a Casa de Passagem, espaço que abriga pessoas em vulnerabilidade do município e região. O local fornece alimentação, roupas e local para dormir, sendo mantido pela Secretaria Municipal da Assistência Social da cidade que utiliza-se da Central de Resgate Social para alcançar as pessoas necessitadas.


Casa de Passagem de Chapecó. (Créditos: Thainara de Witte)


Segundo a Secretaria, os moradores de rua que aceitam receber o auxílio pelo Resgate Social são encaminhados à Casa de Passagem, e os que não aceitam recebem cobertores, café e alimentos. Porém, para Alceu e Bertotti o auxílio não chegou durante o inverno. “Estivemos aqui o tempo todo e nenhuma vez apareceram. Quem veio foi um pessoal da igreja, trazer cobertas e sopa”, descrevem. Questionados se a Casa de Passagem seria uma solução viável para ambos, a dupla responde em uníssona negativa. “Aquele lugar lá é perigoso. Eu já fui. Fui até ameaçado. Tem um pessoal mau que está lá dentro que não deixa você ficar sossegado. Se for pra ser assim, prefiro ficar na rua”, desabafa Bertotti.


No entanto, a Secretaria de Assistência Social afirma que até mesmo contou com uma equipe de plantão para auxiliar os moradores de rua durante a pandemia de Covid-19. Devido à grande demanda, o serviço foi dividido em duas operações: a população em situação de rua foram alojados na Cidade do Idoso e os imigrantes latinos estão sendo enviados para a Casa de Passagem.


Mesmo assim, nossos entrevistados afirmam que o auxílio não chegou até eles. “Quando eu caí de lá (escadaria da catedral), fiquei no chão desmaiado mais de meia hora até o resgate chegar e me levar para o Hospital Regional. Imagina esse Resgate Social aí. Não vem não”, afirma Bertotti.


Segundo dados da Pesquisa Nacional sobre a População de Situação de Rua no Brasil, existe um perfil de moradores de rua. Assente na pesquisa, têm-se o fato de que a maioria da população é composta de homens (82%), pardos (39,1%) e jovens, entre 26 e 35 anos de idade (27,1%). As mulheres representam os outros 18% da totalidade e possuem a faixa etária dos 18 aos 25 anos como a maioria de 31,06%. Alceu e Bertotti são parte dessa estatística, frequentemente ignorada e esquecida pelas outras parcelas da sociedade.


“Eles nem lembram de nós, mas querem nosso voto”


Coincidentemente, a entrevista foi realizada em plena campanha eleitoral, onde a cidade se via lotada de santinhos recheados de promessas aos mais diversos setores da sociedade. Educação, economia, saúde, saneamento, cultura e lazer, todas temáticas amplamente discutidas durante o período eleitoral. Mas e quanto a essa parcela da população?


“Não veio nenhum candidato falar com a gente. Eles nem lembram de nós durante a campanha, mas querem nosso voto”, exclama Bertotti enquanto limpava com uma pequena estopa imunda os diversos pontos em seu nariz. “Não sei nem onde está meu título de eleitor, mas se soubesse eu é que não votaria nessa gente”, finaliza indignado.


Já Alceu possui outra visão quanto ao exercício da democracia. “Eu até votaria. Em 2018 fiz até campanha pra um político aí. Mas meus documentos estão tudo lá na minha mãe que mora no Efapi, e eu com esse joelho não consigo caminhar até lá”, relata. O transporte público em Chapecó teve seu fluxo reduzido devido à pandemia de Coronavírus, e por consequência, inúmeras pessoas deixaram de utilizá-lo, o que inclui a mãe de Alceu. “Ela vinha sempre me ver aqui. Trazia comida, conversava comigo. Mas agora com esse vírus aí não vem mais. Desde o início da pandemia não a vejo”, emociona-se Alceu.


Segundo o parágrafo sexto do decreto nº 7.053 de 2009, é dever do poder público promover os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais dessa parcela populacional, por meio da articulação de políticas públicas em âmbitos federais, estaduais e municipais de total responsabilidade do poder público, desde sua elaboração até posterior financiamento. Além disso, cabe ao poder público fomentar a participação dos cidadãos em situação de rua na formulação, controle social, monitoramento e avaliação de tais políticas públicas.


Distante dessa realidade, Alceu e Bertotti sentem-se cada vez mais excluídos pela população chapecoense e planejam uma mudança de ares. “Vou ir para Florianópolis assim que minha Kombi estiver pronta. Vou levar meu amigo e vamos viver por lá. Chega de passar por tanta humilhação aqui”, confidencia Bertotti. Ao serem perguntados se sentiriam saudades da família morando tão longe, Alceu se emociona. “Eu tenho uma filha, de uns 20 anos. Não vejo ela desde que ela tinha essa idade aí”, disse apontando à uma criança que passava. “Quando se está no lugar onde estou, o melhor que você pode fazer é sumir. Pelo bem de todos”, finaliza entre lágrimas.


Depois de almoçarmos, nos despedimos da dupla. Cada um seguiu seu caminho e nunca mais encontramos nenhum dos dois. Imaginamos que devem ter ido seguir o sonho floripano, e deixado para trás as mazelas chapecoenses. Mas a imagem de ambos apoiados, mancos, machucados fisicamente e emocionalmente, descendo aos risos a avenida estará para sempre conosco. Cada vez que olharmos novamente para os invisíveis brasileiros e brasileiras em situação de rua pelo Brasil afora, veremos Seu Alceu e seu amigo Bertotti.


Seu Alceu e Bertotti. (Créditos: Thainara de Witte)

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