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  • Alexandre Carlos Madoglio

Os músicos silenciados

Atualizado: 9 de dez. de 2020

Por Alexandre Madoglio e Emanuele Schardong


Do dia para noite, o apagar das luzes no setor musical. Crédito: Arquivo Pessoal


A música é como o tempo. Um turbilhão de emoção em cada nota musical, em cada métrica, em cada ritmo. Ela calma, diverte ou transforma em choro. Mesmo na dor, a música é essência de vida. Você imagina um mundo sem música? Será que seria diferente?


Do dia para a noite, o silêncio. Se em um contexto normal a falta de música já nos parece falta de vida, imagine em meio a uma pandemia de uma doença pouco conhecida e da qual não se pode prever o futuro. Agora imagine sendo você o cantor e tendo a música como o sonho da sua vida. O silêncio se torna ensurdecedor.


As dificuldades de 2020 para o setor musical foram gigantescas e generalizadas. Dos cantores populares aos mais eruditos, todos foram igualmente afetados e apesar das muitas tentativas de retomada, o setor ainda parece nadar contra uma correnteza desconhecida. De acordo com a União dos Músicos Chapecoenses - UMC, atualmente existem mais de 30 bandas e 120 músicos exercendo atividades na cidade de Chapecó e região. Esses profissionais se encontram há quase 300 dias em total paralisação de suas atividades laborais e que passaram a depender de outras alternativas de rendimento. O lento retorno das atividades, ainda sem perspectivas concretas de retomada integral, assusta e causa uma série de questionamentos e dilemas pessoais para cada um daqueles que tem a música como fonte de renda e, principalmente, como objetivo de vida.


Preconceito e readaptação


Não importa o gênero musical, a dor veio para todos. “O ano de 2020 era estimado como o melhor ano na música. O setor estava muito feliz”, recorda Claciane Aparecida Reginatto, a Classy, da Banda Mercosul. Cantora de grandes sucessos de bandinhas, Classy foi obrigada a investir em outra área durante a pandemia. Natural de Xaxim, carregou consigo o dom musical a partir dos aprendizados com seu irmão, que é baterista.


Classy é reconhecida por grandes sucessos de bandinhas. Crédito: Arquivo Pessoal


Classy reclama quando limitam a música a certos gêneros musicais, diminuindo o valor cultural e a relevância de alguns deles. “Ninguém lembra que existem bandas. Muitas pessoas mandam a gente ir trabalhar e enquadram a gente como vagabundos”, afirma, com desânimo. Apesar disso, a base de fãs e amigos de Classy foram primordiais durante a pandemia, mantendo sua subsistência com doações em dinheiro.


Bastante conhecida entre os fãs do gênero, a cantora tem mais de 90 mil seguidores no Instagram, e mesmo antes da pandemia entendeu a importância dessa ferramenta, fazendo curso para aperfeiçoar seu desempenho na rede social. “Eu procurei entender a ferramenta como forma de ganhar dinheiro até porque eu usava a rede para mostrar meu trabalho musical. Hoje eu faço trabalho de divulgação para empresas e ter uma renda extra”, destaca. Não diferente de outros cantores, Classy também comemorou a grande revolução cultural surgida com a pandemia: as lives. “Os empresários nos ajudaram muito durante as lives. Elas nos salvaram”, explica, demonstrando a gratidão com um generoso sorriso.


Dos palcos para a vida de digital influencer. Crédito: Arquivo Pessoal


Apesar de ter encontrado algumas soluções, a vocalista tem expectativas pessimistas para o retorno das atividades. “Estamos sem dinheiro para investir em uma música. Vejo que barzinhos no Nordeste estão abertos com shows lotados entre 10 mil pessoas e tudo normal. Mas, no setor de baile além do preconceito, dificultam mais. Qual a empresa que sobreviveria e conseguiria abrir as portas novamente depois de oito meses sem caixa?”, pergunta.


Classy remói o passado turbulento com os bailes. “Já vínhamos com dificuldades de tocar nas comunidades pela proibição dos padres. Tivemos a gripe A, o incêndio na Boate Kiss e aí as bandas precisam parar. Vejo que é um cerco que está se fechando, inclusive nos lugares das apresentações”, exalta. A cantora pensou até mesmo em desistir da profissão, mas o amor falou mais alto. “Parar de cantar não paramos, mas vamos ter que nos readaptar a uma nova forma que ainda não sabemos como. Acredito que só na metade de 2021 voltaremos aos palcos”, destaca.


O silêncio do palco vazio


A história contada por Classy é parte de cultura de Chapecó, e que se mistura com a dos palcos que a acolhe. O Da Casa é um desses clubes tradicionais, inaugurado há cinco anos e que possui um público fiel. Característica de Chapecó, as bandinhas dominam boa parte da cultura local. “Aqui se tem um grande potencial. É uma cidade de um povo que gosta de bailes. Sentimos a deficiência e instalamos”, relembra Daniel Aurélio, proprietário do local.


Os bailes aconteciam nas sextas e sábados. Eram nove bailes com cerca de cinco mil pessoas por mês. O último baile foi no dia 14 de março e desde então as luzes do palco seguem desligadas. “Da noite pro dia foi fechado tudo. Eu tinha a agenda completa de bailes até o fim do ano. Tive que dispensar meus funcionários”, afirma. Daniel já está há oito meses com as atividades quase que completamente paradas. Durante esse tempo ele não criou outras alternativas para sobreviver, pois ainda acredita no retorno das atividades. O organizador de eventos pondera, contudo, que a paralisação das atividades ocorreu de forma precipitada em Chapecó.


Assim que foi observada queda no número de contágios em Chapecó e que as liberações começaram a ocorrer, Daniel realizou quatro eventos, em uma nova proposta: transformou os grandes bailes em um modelo “barzinho”. “Cumprimos todas as normas de segurança impostas pelos órgãos de saúde. Acredito que já está na hora de retomar os eventos. No Rio Grande do Sul não teve eventos ainda, e já foi notado que os casos aumentaram. Então já foi comprovado que não são os eventos culpados pelos casos”, afirma.


Daniel cita diversos exemplos de aglomerações e questiona o motivo da paralisação. “O pessoal que gosta de bailes fica em casa aglomerado. Na avenida também é todo fim de semana a mesma novela. É uma loucura de pessoas nos mercados, nos bancos e frigoríficos. É muito fácil as pessoas que ficam no ar condicionado e que tem o salário no fim do mês ficarem questionando a gente”, finaliza.


Trocando microfones


É nas tardes de segunda a sexta-feira que a voz de Celso de Souza ecoa pelas ondas sonoras da Rádio Efapi 105.1 FM. É exatamente às 13h que a vinheta roda e a chamada anuncia: “chegou a hora, chegou a alegria, é o Alegria da Banda”. A entrevista foi logo no fim do programa que ele apresenta em sua segunda profissão. A sua primeira é a música há 31 anos. Herdou o dom dos seus familiares que cantavam e tocavam músicas de baile no município de São Carlos, no Oeste de Santa Catarina.


Pelas ondas sonoras do rádio, o cantor mata a saudade do público. Crédito: Alexandre Madoglio


Além da carreira solo, Celso é integrante da Banda Sabor do Som que anima bailes e formaturas. Celsinho como é seu nome artístico trata a pandemia como um bloqueio para a profissão. “O nosso último baile foi dia 13 de março e teríamos eventos até o fim do ano. Ficamos só na expectativa”, enfatiza o cantor. A banda em que Celso trabalha pretendia também neste ano gravar um novo clipe musical e criar um material de divulgação.


Antes da pandemia, na sua carreira solo, Celso animava festas em bares e locais fechados. “Eram quatro shows por semana e depois embarcava no ônibus da banda rumo aos eventos do fim de semana. A minha folga era apenas na segunda-feira”, relembra o passado de sucesso. Para sobreviver e pagar as dívidas, Celso e a banda precisaram criar alternativas de rendas durante a pandemia. A principal foi as lives com anúncios que auxiliam no sustento. Além disso, eles também receberam cestas básicas de populares que se sensibilizaram. “É um momento novo e estamos nos adaptando todos os dias. Aprendendo a inovar para o retorno ser um sucesso”, destaca.


Durante o mês de outubro com a diminuição dos casos de coronavírus em Chapecó, Celso havia retornado aos bares com shows acústicos. Logo depois, precisou novamente cancelar devido o aumento da contaminação em Chapecó e a região entrar no nível gravíssimo da Covid-19. Para 2021, Celso pretende gravar quatro músicas e escolher uma para um clipe. “Espero que isso passe logo para retornarmos aos palcos e reencontrar amigos”, profetiza.


A pandemia veio para ensinar


Natural de Guaraciaba, no Extremo Oeste de Santa Catarina, Andrei Heberle, é hoje um dos principais cantores sertanejos em Chapecó. Os olhos de cor preta do pequeno menino quando criança brilhavam ao ver o Tio Jaci tocar violão e cantar os sucessos da época. “Eu ia na igreja, na casa dele, e comecei a gostar de cantar e tocar. Aos meus 12 anos, ganhei meu primeiro violão e aprendi as notas sozinho”, destaca com o sorriso no rosto de quem se orgulha do que faz.


Durante 12 anos Andrei fez dupla com outro cantor e também já cantou em banda de bailes. Há três anos, ele preferiu seguir carreira solo. Com planos positivos para 2020, Andrei foi obrigado a adiar projetos grandiosos, que agora esperam o recomeço. “Eu iria finalizar uma música e gravar um mini DVD acústico que já estava em andamento”, cita.



Cantor há mais uma década repensou a vida na música. Crédito: Arquivo Pessoal


Ao falar dos shows antes da pandemia, a voz de Andrei fica embargada. “A agenda estava muito boa. Eu tocava cerca de 15 shows por mês”, relembra. A esperança é que volte ao normal, mas com os números acelerados o setor continua afetado. Andrei participou de diversas lives solidárias em prol dos cantores da cidade e também para crianças com doenças raras.


Dias antes da pandemia, Andrei havia começado a trabalhar em uma loja de telefones como vendedor. “Eu não tinha ideia do vírus ainda. Estava ficando muito tempo em casa sem nada para fazer. A vida profissional do cantor começava na quinta, sexta, sábado e domingo. Aí resolvi ocupar a cabeça e aceitei o desafio”, conta com um alívio de ter conseguido um ganho extra.


Sobre a paralisação do setor, o cantor reforça que a parada foi necessária e acertada. “Eu acredito que as coisas devem já voltar ao normal. As pessoas do grupo de risco devem ser preservadas. Com os devidos cuidados, já podemos voltar”, avalia.


A parada serviu também para Andrei repensar sua vida. “A pandemia veio para ensinar muita coisa. Serviu para a gente valorizar a família. Eu viajava muito para cantar. Eu pude ver que não é só dinheiro que é necessário. Às vezes curtir a família um fim de semana por mês é mais valioso do que o dinheiro”, jura com um sorriso quando citou.


A música é uma forma de existir


O artista multidisciplinar Manolo Kotttwitz, de 29 anos, é músico há 14 anos, tendo se profissionalizado há 10. Sua aproximação com a música aconteceu na escola e a paixão foi instantânea. Aos 15 anos Manolo já era vocalista de sua primeira banda. Atualmente Manolo atua em dois projetos musicais que despontam da realidade tradicional de Chapecó: no Farofa Trio, a abordagem é através do samba raiz, pouco difundido na região oeste. Já em seu outro projeto, a banda Mustag Blues Brothers, junto de outros músicos difundindo o rock e outras vertentes do blues. Em ambos os projetos o ano de 2020 era visto como momento de consolidação e crescimento regional. Planos esses que foram completamente suspensos com a paralisação das atividades dos bares e casas de show com as quais costuma trabalhar.


A Mustang Blues Brothers surgiu da reunião de artistas chapecoenses que buscavam ampliar sua sonoridade musical. Crédito: Arquivo Pessoal


Para Manolo, a grande dificuldade do setor com a pandemia é a falta de suporte de um sindicato. “O sindicato dos músicos da região está desmantelado, com uma série de improbidades por parte dos dirigentes e acabou não contribuindo para o fomento e fortalecimento das estratégias de continuidade das atividades”, avalia. Manolo, porém, destaca positivamente a conduta dos demais colegas de categoria. “Houve, entretanto, uma mobilização jamais vista no meio artístico de Chapecó, envolvendo articulação de diversos agentes e atores da sociedade civil e das políticas públicas para conduzir as ações entorno das leis emergenciais para a cultura. O Conselho Municipal de Políticas Culturais convocou a classe diversas vezes para planejar as ações envolvendo o auxílio para a cultura, criando, inclusive, grupos de trabalho para realizar busca ativa e cadastrar novos agentes passíveis de receber a verba.”


Com relação a análise sobre o resultado das lives, Manolo é comedido. “Bandas mais envolvidas no mainstream das casas de show da cidade conseguiram patrocínios privados e puderam gerar uma receita considerável. Já grupos de atuação mais independente penaram um pouco mais, criando campanhas de financiamento coletivo que, muitas vezes, não atingiram o valor pretendido, fazendo com que o mesmo fosse estornado aos colaboradores. Então, para estes outros grupos, as lives serviram mais para manter a imagem pública e não "cair no esquecimento", digamos assim.



O Farofa Trio busca propagar a cultura do samba tradicional em Chapecó e na região oeste. Crédito: Arquivo Pessoal


Mas ainda que seja possível encontrar outros caminhos para a subsistência, a música não parece ser apenas uma profissão. É, em verdade, essência de vida. Ao traduzir esse sentimento, Manolo parece falar em nome de cada músico. " Eu vejo que, em muitos casos, a questão extrapola a necessidade financeira. Fazer arte/música, para muitos de nós é uma forma de existir no mundo. Como quando se corta raízes de uma planta, ela vai morrendo aos poucos. Dinheiro paga nossas contas, certamente, mas o fazer artístico influi diretamente em nossa saúde mental e nossa vitalidade. Infelizmente, estamos na corda bamba”, lamenta.




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