Desafios enfrentados durante a crise econômica e a falta de água no Oeste
André de Lazzari e Julia de Araujo
Sexta-feira, fim da tarde, 18 horas, para sermos mais precisos. Olhando para o céu nós vimos o tempo fechar, aos poucos. Após um dia de entregas de cestas de produtos agroecológicos produzidos em sua horta, Carmem Munarini espera a reportagem na porta da sua propriedade na Linha Faxinal dos Rosas, interior de Chapecó. Devidamente trajada com uma das camisetas do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e um meio sorriso, ela nos recebeu cordialmente para conversar sobre o ano em que as coincidências geraram um colapso no mundo como o conhecíamos. Afinal, é de se fazer de tolo quem acredita que após o fim da pandemia de Covid-19, a sociedade e a forma como as pessoas levam a vida será igual a de outrora.
Carmem e Antonio Munarini são produtores agroecológicos e não pararam durante a pandemia. (Crédito: André de Lazzari)
Carmem, assim como sua família, trabalha com a produção agroecológica, um método não agressivo com o meio ambiente, que elimina os agrotóxicos do processo de produção, mas ao mesmo tempo é mais trabalhoso. Também mostra um recorte de cooperação familiar, cheia de valores e afetividade. Recompensa que vem com a excelente qualidade dos produtos colhidos.
Em frente a todas estas questões, buscamos saber como a pandemia de Covid-19 afetou a agricultura familiar, em todas as áreas: saúde, educação, produção de alimentos, finanças e política. Ouvimos várias pessoas sobre o assunto e constatamos informações ainda não divulgadas até o momento sobre o tema. Em geral, associações e cooperativas que vendem os produtos da agricultura familiar e do extrativismo têm uma certa vulnerabilidade. Essa classe que movimenta a base da agricultura e emprega cerca de 10 milhões de pessoas no país sofre com perda de espaço, falta de renda emergencial e o período de seca no Oeste Catarinense, que tem dificultado a vida do produtor.
O que diz o sindicato
O coordenador regional do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Sintraf) da região de Chapecó, Maicon da Rosa, comenta que quando ocorreu o decreto de lockdown em Santa Catarina pelo governador Carlos Moisés no dia 17 de março de 2020, o sindicato esteve por três semanas parado. Após isso se iniciaram as reuniões virtuais com as autoridades para saber dos impactos imediatos da contingência para o agricultor. Após, foram feitos os levantamentos: “Um dos primeiros problemas foram no hortifruti. O consumo praticamente zerou. Quanto à merenda escolar, a distribuição também foi interrompida. Os agricultores acabaram perdendo muito produto e tendo grande prejuízo. Outra questão foi a da produção de leite e carnes, saíram muitos boatos que fizeram com que os laticínios baixassem o preço do leite, por não saber a dimensão que a pandemia teria”, comenta Maicon.
Segundo o sindicato, aproximadamente 150 famílias em Chapecó ficaram sem renda e acumularam dívidas por causa da pandemia, sendo a maioria destas feirantes. Outro fato preocupante foi a insuficiência do Governo Federal em minimizar os efeitos econômicos da contingência na agricultura familiar. Segundo o Sintraf, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que completou 25 anos em 2020, não teve acréscimo no seu orçamento, mesmo com a crise. Além disso, nenhuma linha de crédito emergencial foi concedida aos agricultores familiares. “O recurso de 2020 [do Pronaf] está se esgotando e pode acabar antes do fim do ano”, ressalta Maicon. A única ação no tocante a programas de incentivo por parte de Brasília foi um acréscimo de R$ 500 milhões aos R$ 186 milhões iniciais para o Programa de Aquisição de Alimentos para a Agricultura Familiar (PAA).
A visão do Estado
O Secretário-Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia, Denis Monteiro, reconhece as dificuldades que o produtor familiar vem enfrentando. “Nós não fechamos os olhos para eles [produtores]. Pelo contrário, pensamos em diversas ações para que o impacto da pandemia, que não pôde ser evitada, seja menor em todas as áreas da economia. Antes da pandemia, muitas comunidades já tinham dificuldades para se alimentar, não podemos permitir que este quadro se agrave”. O setor do qual dependem 18 milhões de brasileiros precisa cada vez mais de atenção, não apenas pensando na distribuição dos alimentos mas também na produção, que esteve limitada nos últimos dois meses, onde a crise hídrica, na região Oeste, tem se agravado.
A estiagem tem sido um problema maior, pois se não tem água, não tem como plantar e logo não tem produção de nada, é uma insegurança a mais para quem vive da terra. Segundo o Secretário, “É de extrema importância que esse problema seja observado com atenção, pois todo ano a região passa por essa dificuldade. A nossa busca é de condições, através do crédito maior para o produtor e de linha de comercialização, um apoio para esses agricultores continuarem seu trabalho. Não temos controle sobre a água mas temos como construir um sistema que funcione melhor. Ninguém estava preparado para uma crise econômica, é uma coisa sobre a outra e reconhecemos que existem falhas”.
No dia 8 de abril de 2020, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) publicou uma proposta para retomada do Programa Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). O documento foi assinado por 774 organizações, redes e movimentos sociais do campo e das cidades, para propor a alocação imediata de R$ 1 bilhão para comprar e distribuir alimentos para as populações em situação de fome e de insegurança alimentar e nutricional, montante que deve chegar a R$ 3 bilhões até o fim de 2021. A agricultura familiar tem papel importante nesse sistema, pois produtos cadastrados vendem para empresas e organizações e podem produzir para o programa. “Mais do que nunca, o fomento público à demanda por alimentos saudáveis mostra-se como uma estratégia onde todos ganham e que é indispensável para uma combinação de desafios sociais e econômicos de longa data, mas agora maiores pelo surto da Covid-19. A implantação de medidas emergenciais que simultaneamente apontem para transformações estruturais em um sistema à beira do colapso, estão acontecendo em um ritmo que não agrada todos, mas não é algo que se resolve do dia para noite”, acrescenta Denis.
Merenda escolar
Outro grande tema que movimentaram as discussões no Sindicato foi as licitações para fornecimento de merenda escolar para a rede pública de ensino. Em Chapecó, o Sintraf comenta que o debate para a criação e o cumprimento da Lei 13.987/2020, que permitiu a distribuição de kits de alimentação escolar para os alunos das escolas públicas, chegou à esfera federal. Apesar da lei ter sido sancionada em abril, somente em setembro é que Chapecó iniciou a primeira distribuição de kits. A demora foi criticada pelo Sindicato, e por isso a reportagem procurou a Secretaria de Educação (Seduc) do município.
Marinete Kolling da Silva, diretora pedagógica da Seduc, explicou como todo o trâmite aconteceu: “Temos um contrato com a Nutriplus, mas adquirimos alimentos da agricultura familiar, que repassa estes alimentos para a empresa, que tem descontado de seu contrato o valor da compra que fizer de produtos oriundos das pequenas propriedades. Quando foram suspensas as aulas, o contrato com a Nutriplus e a chamada pública para a agricultura familiar também foram suspensas. Nós pensamos que iríamos retornar logo, no máximo em junho. Num primeiro momento não aderimos à nova lei porque cremos que a pandemia seria curta, mas as coisas foram se agravando e quando vimos que não iríamos voltar tão cedo, começamos a montar os kits.”
A lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é clara: é preciso investir no mínimo 30% do valor total de contratos na compra de produtos da agricultura familiar. Independente da pandemia, a lei seguiu assim neste quesito, mas a Prefeitura não tinha a desculpa de não querer comprar porque não queria fazer os kits. Para tentar recuperar o tempo perdido, se utilizou a chamada pública anteriormente suspensa para a primeira distribuição: “Chamamos a Cooperfamiliar e a Sabor Colonial, que pela primeira vez ganhou a chamada, para que montassem os kits com 100% dos produtos oriundos da agricultura familiar. Consultamos a viabilidade dos produtos que podíamos colocar no kit, dentro da lista de produtos pedidos na chamada, em função da perecibilidade de alguns deles, e a proposta deixou os agricultores muito contentes”, comenta Marinete.
Questionamos a Seduc sobre Chapecó ser um dos municípios que, segundo os dados do Portal da Transparência, somente cumpre com o mínimo de 30% dos recursos para a agricultura familiar que determina o PNAE: “Não é verdade, porque em 2019 nós gastamos quase 50%. Em 2018, faltaram algumas notas fiscais para entrar no Portal da Transparência, deu um problema no sistema. E em 2020 não sei qual vai ser a porcentagem, porque pegamos apenas produtos da agricultura familiar. Tudo o que eles nos ofereceram, nós compramos. Não consigo assegurar um recorde, mas quando você lida com o dinheiro público, a coisa tem de ser séria. Fizemos um processo longo para entregar os dois kits, enquanto houveram municípios que entregaram os kits sem edital, e isso pode dar problema. Procuramos fazer da forma correta e melhor possível”, aponta a diretora.
Cada aluno tem direito a um kit, o recurso é para cada criança independentemente de sua condição socioeconômica. Se necessita fazer um cadastro prévio para recebimento do kit, porque os produtos estragam muito rápido, como, segundo a Seduc, foi o caso da cenoura, que teve que ser trocada em muitos kits pelas famílias agricultoras. Ainda assim, muitos que se cadastraram não foram retirar o kit na primeira entrega, e isso deu problema para a Prefeitura na hora da segunda entrega, que foi realizada em novembro: “Estes kits remanescentes poderiam servir como kit extra para famílias cadastradas no Bolsa Família e no CadÚnico. O problema da segunda entrega é a falta de alguns produtos do kit em questão da indisponibilidade nas propriedades. As cooperativas simplesmente não tinham os itens em depósito, como o feijão e o arroz, que tiveram altas muito grandes nos preços. Ainda assim, conseguimos montar um kit sem feijão, mas com o dobro do arroz, além de todas as hortaliças do primeiro kit, mais 1 kg de laranja e 1 litro de leite”, relata Marinete.
As plantações de batata foram atrasadas pela família Munarini em 2020, em função da estiagem. (Crédito: André de Lazzari)
Seca histórica
As altas nos preços e a falta de produtos que se refere a diretora são fruto de uma seca histórica que Chapecó viveu em 2020. Em 28 de novembro de 2020, o negativo acumulado de chuva na capital do Oeste, segundo a Epagri/Ciram, era de 137mm. A estação meteorológica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou apenas 29% da precipitação normal para a época. E esses dados já foram mais alarmantes, principalmente no mês de outubro.
Carmem confirmou os dizeres de Marinete quanto à falta de produtos e à seca: “Faltou produto! (risos) Não é só nós que produzimos e que temos acesso a alimentação saudável que achamos que os produtos são bons, quem compra também tem a mesma opinião. Tivemos mais procura que o normal e, logo depois das últimas geadas, que neste ano foram tardias, nós plantamos também tardiamente, e veio a seca. Não vencemos a procura que tem. Faltou não só pros kits, mas também pra toda a população.”, relata.
O engenheiro agrônomo Rodrigo Canova Kern, formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina, passou os últimos meses buscando novas formas de amenizar o impacto da seca nas propriedades em que trabalha. “Até o começo da pandemia eu trabalhava com vinhos e na serra o clima é sempre propício, porém ainda cuido de algumas propriedade no Oeste e também no Rio Grande do Sul, nunca vi uma seca como essa no Oeste. Todo ano a gente sabe que durante um tempo vai faltar água mas dessa vez foi desesperador, em alguns lugares o prejuízo foi enorme. Eu não tenho dúvidas que o abastecimento descentralizado seria um recurso que mudaria a vida de quem vive na cidade, mas também é a opção que mais alivia o bolso e a saúde do agricultor, que não precisa se desesperar”, comenta.
Rodrigo é filho de produtores que participavam de programas em parceria com escolas do interior, e fez um relato pessoal sobre a situação: “Tudo é assustador nesses últimos meses, que se você parar para pensar, foi um ano já, as pessoas passaram por diversos estágios. No começo da pandemia a economia era o maior problema e para o produtor maior, foi bom, porque a população começou a comprar mais comida, como ninguém sabia ao certo como seria essa fase e quanto tempo iria durar, todo mundo começou a comprar e estocar algumas coisas. Então, os mercados compravam mais mercadorias, foi uma loucura total. Mas aí tem a produção familiar, onde tudo é mais lento desde o começo do trabalho até a distribuição, é um processo diferente, a venda não é em massa, é mais pessoal e como que você vai vender na feira se ninguém pode sair de casa? Não pode receber ninguém e aí? As linhas de crédito demoraram para serem abertas e a falta de comunicação do estado sobre o auxílio emergencial é uma piada, os primeiros meses foram muito ruins. E quem antes produzia para as escolas, como meus pais, foram esquecidos. Os sistema demorou muito para tomar uma decisão e algumas propriedades até doaram o que tinham para o alimento não ser perdido“.
Viver da terra sempre foi um desafio. Ao longo dos anos, com a modernidade chegando, os olhos dos mais jovens brilharam e muitos foram embora e nunca mais voltaram. Por algum tempo a sobrevivência da roça foi questionada, mas o jogo virou de uma certa forma. Porém, as famílias, que produzem localmente, que são a base da economia, sempre lidaram com mais dificuldade com o mundo e suas mudanças. Valorizar a agricultura familiar, principalmente no Grande Oeste, é andar de mãos dadas com quem passa a vida de sol a sol, que pensa na saúde que vai para a mesa, que cuida com amor de cada grão. Eles têm a cara dos nossos avós, pais, tios e tias. Eles nos dão o almoço de domingo com a família. Acolhedor como a casa em que nascemos. O cheiro de mato, de chá e de tempero. Cheiro de vida.
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